segunda-feira, 22 de novembro de 2010

LARANJINHA

Remaldo Cassol
             Descascava a laranja temporã, dando fim à última fruta da árvore. Atirava a casca nas formigas e o bagaço para o pequeno cão. Silenciosamente recebia o sol em meu rosto como indício da primavera,  mostrando suas flores e pequenos frutos. O meu pensamento estava longe.
            Lembrava-me de um velho pomar com suas frutas beliscadas pelos pássaros que competiam conosco no saboreio da variedade de frutos. Os pêssegos vermelhos com a pele aveludada dando calafrios nos dentes. A maçã com irresistível aroma e sabor. As peras meio rígidas com seu formato tão lindo parecendo uma jarra colorida. E tantas outras frutas que davam uma visão agradável, atropelando o olfato e os olhos. E as uvas com longos cachos dando oportunidade de saborear uma a uma. Longe do quintal uma fruta rara, a romã, com a casca grossa, ao abri-la, grãos avermelhados e unidos demonstrando um potencial de resistência e fraternidade.
         Tudo isso me passou segundos pela minha mente enquanto as pequenas netas brincavam com toda a liberdade, num corre-corre, e ao mesmo tempo com uma carinha de que alguma arte estava sendo preparada.
          Fui até o muro retirar alguns galhos que passaram para o vizinho, jamais pensara que as ameixeiras estivessem me traindo, dando suas frutas no outro lado do quintal.
          Mais uma vez observei o olhar sorrateiro e ao mesmo tempo meigo das netinhas. Algo estava para acontecer, ou já havia acontecido. Continuei distraído olhando o chão, olhando o céu, olhando os pássaros na antena da televisão.
         Quando voltei à realidade, a laranjeira estava praticamente sem frutinhas. As mesmas que eu contava todos os dias, orgulhoso de meu pomar dando as primeiras frutas. Estavam uma a uma estendidas no muro como se fossem adereços de uma obra de arte. A minha fúria foi como um relampejo. Gritei desaprovando o que tinha sido feito.
         — Quem apanhou minhas pequenas laranjinhas?  — o silêncio respondia acusando a pequena — Quem apanhou todas minhas laranjinhas? — gritei novamente.
            Um soluço acompanhado de um principiar de choro respondeu com uma voz causativa tímida e embargada.
        — Nono fui eu e minha prima, também tua neta — me voltei para a outra.
        — Mas como fizeram isto, apanharam todas as laranjinhas?
          O choro foi intermitente. A primeira respondeu com convicção: Todas não, as de cima ficou difícil de apanhar.
          Disfarçando a brabeza e resmungando, saí com as mãos tapando o  sorriso. A outra se desculpou argumentando pensar que as laranjas pequenas para nada serviam. Só as grandes elas comiam, e como não tinha nenhuma, poderia arrancar todas.
            Dei meu perdão logo, embora a palavra, “malvadas” tenha vindo à tona. Logo responderam:
           — Não somos malvadas.
          Ficando para mim uma lição: Apanhamos o que esta embaixo, mais fácil, mas fica crescendo o que não conseguimos destruir.



domingo, 31 de outubro de 2010

ONTEM FOI MELHOR

Mariane de Macedo
16 de setembro de 2010

                     O farfalhar das folhas tocadas pelo vento na calçada era o único som identificado por Narciso. Na casa havia um silêncio que se estendia pelos cômodos, onde ainda permanecia o mesmo cheiro, que por tanto tempo o acompanhara. A casa cresceu. Existiam muitos espaços não mais habitados, tudo estava maior, até mesmo sua voz parecia alta. 
                   Ficar sozinho sempre fora sua predileção, mas a lembrança dos olhos negros, que pouco a pouco foram perdendo o brilho, da voz que se foi  escasseando, dos beijos e carícias por obrigação, até o par de malas na porta, deixavam-no inquieto. As últimas palavras carregadas de mágoa demonstravam o tempo perdido. Caminhar, abrir e fechar portas se tornara agora sua rotina.      
                 Tentava retomar sua vida, mas não se lembrava mais do que gostava, do que fazia antes dela. O tempo havia passado tão rápido e nem percebera. Não se reconhecia, havia ficado frouxo, pois as lágrimas já lhe escorriam pela face. Queria acreditar que estava aliviado, que seria melhor obedecer à razão. Mas os sentimentos lhe traíam, a todo o instante, convidando-o tomar uma atitude, o que não podia fazer.
                  A rede ainda estava pendurada no mesmo lugar do pátio, porém vazia. Retirou-a dos ganchos que a prendiam e dobrou-a, lentamente, para que ficasse uniforme. Só iria usá-la dali a duas estações. Quando retomou o caminho para o interior da casa, apressou o passo, olhar para trás era a saudade de ontem.  Sentia raiva de si mesmo, pois vivera como se fosse infeliz, com queixas, críticas, birras e vinganças, mas toda esta verdade que lhe doía no peito forçava-o a ver que tudo isso era mentira.
                Na garagem o carro com a cor, escolhida por ela, brilhava.  Pegou a chave entrou e saiu em alta velocidade. Com o vidro aberto, sentia o vento frio batendo em seu rosto. Sem rumo, apenas dirigia escutando o rádio que insistia nas mesmas melodias, que ouviam juntos. Sem perceber havia parado em um local conhecido. Levantou os olhos e viu a silhueta de uma mulher pela janela, atrás da cortina. O seu corpo gritava por ela, que sempre se entregara sussurrando, plena, quente, ardente. Essas lembranças acudiam-lhe ao cérebro atormentado, e agora eram permitidas apenas em sonhos, dos quais nunca queria acordar. 
                Decorridos minutos a luz acendeu e pode vê-la melhor. De olhos fixos em suas feições, teve ânsias de guardá-la nos braços, afagar o seu cabelo sedoso. Por um momento, vagava- lhe no coração uma saudade infinita, que deixava transparecer profunda fraqueza, que lhe anulava as últimas resistências. Queria saber como estava? Com quem ela andava? Odiava não conhecer de sua rotina, mas era apenas por curiosidade, pois fizera a melhor escolha.  Ao ver-se descoberto, deu ré e foi embora, assustado. 

RENÚNCIA


                                                               Anna Zoé 
Setembro/2010
A chuva do fim de semana frustrara os planos da turma de amigos.
O hotel fazenda tinha tudo o que prometera: cama e banho confortáveis, mesa farta, comida campeira de qualidade, nada a recamar. Mas ficarem ilhados todo o tempo, sem experimentar os passeios a cavalo ou banhos no riacho, ou sentir o cheirinho do campo e visitar os estábulos e mangueiras, que constavam do catálogo de atrações, era “o fim da picada” - no dizer de Maurício.
Chegou a noite, e os jovens já estavam cansados de ouvir música.  Jogar cartas, víspora e dominó – atrativos do hotel – foram opções esgotadas até começar o coro de bocejos.
- Vamos conversar, propôs Anelise. A gente na cidade nunca tem tempo pra isso.
- Sobre o quê? Um livro, filme, programa de TV?
- Vamos falar de nós, de nossos sentimentos, pensamentos, afinal não somos máquinas que só se levantam todo dia  para trabalhar, enfrentar o trânsito, cair morto no fim do expediente e alienar-se nas baladas de sábado.
A proposta foi discutida e aceita por todos. Falaram sobre o amor e a amizade; da necessidade de manter a auto-estima em alta; discutiram sobre os prós e contras da competitividade no trabalho, nos relacionamentos amorosos e no convívio em sociedade.
- Qual o sentimento que causa maior impacto em nossas vidas, o amor, o ciúme, o ódio?
Alguns optaram pelo amor, outros acharam que o ódio era mais intenso e de maiores consequências.
- Eu escolho a renúncia, diz Júnior. Ela envolve toda a personalidade, não é como outro sentimento que nasce espontâneo, independente de nossa vontade. Na renúncia, a pessoa sofre pressões internas, luta contra as próprias tendências, fazendo valer o objetivo e não os seus interesses. E decide.
Depois desse desabafo, um silêncio entre eles.  Na memória de todos, a figura de Sandra, antiga paixão de Júnior. Que partira para a Inglaterra com novas perspectivas para sua carreira de jornalista. A mocinha também sofrera. Bastava uma palavra do namorado e ela ficaria onde estava, sem promoção, mas com muito amor.
Júnior sabia bem o que era renúncia.

FLORES

 
                                                                  Remaldo Cassol
Setembro de 2010
O perfume de uma flor é o mais suave descanso de um ser humano.
Sempre que nossa vida tem algum significado, esta ou esteve ou estará presente uma flor.
Quem um dia não procurou suavizar seu caminho acatando a cor e o formato do mais belo da natureza, no encontro de uma simples flor.
Quem não alisou pétalas de rosa como se fosse um veludo deslizante e sem fim.
Quem com margaridas contornando as mãos não procurou afirmação de seu amor com um silencioso bem me quer, mal me quer, bem me quer, mal me quer.
Flores, conjunto de harmonia de dar e receber. A satisfação de dar uma flor é tão sensível como a de receber.
Que seria do mundo sem a beleza das flores simples do campo embelezando a natureza.
Que seria da nossa vida sem jardins floridos, dando resplendor de alegria.
Que seria do bosque e do deserto sem uma flor. Ao mesmo tempo sensibilizando nosso olfato com seu suave perfume.
As flores que beleza! Que desprendimento! Quando terminam sua jornada de beleza, quando seu perfume começa a voar seguindo o vento, oferecem o pólen para as abelhas transformá-lo em frutos.
A primavera que te acolhe é a mais feliz e delicada das estações reforçando nossas energias, dando nova esperança colorida.
Flores, conjunto de harmonia de dar e receber. A satisfação de dar uma flor é tão sensível como a de receber.
Que seria do mundo sem a beleza das flores simples do campo embelezando a natureza.
Que seria da nossa vida sem jardins floridos, dando resplendor de alegria
Flores, teu formato ou onde estiveres não importa, na dor, na morte, na alegria, na vida, sempre serás bem vinda.
Tua neutralidade comunga com todas as atitudes humanas e sensibiliza com todo o coração que te recebe agradecido, pelo gesto de amor e carinho, que tua presença sempre é portadora.
Flor, pureza individual. E mais linda e mais amorosa ficas, quando transformada em ramalhetes ou buquês.

         

DESFILE NA AVENIDA

Renato Pinto Beck 
  Setembro/2010
Era uma família simples do interior. O pai recebera uma gleba de terras nos fundos da estância onde trabalhara a vida toda. Estava velho, não sabia fazer outra coisa. Cuidava uma ponta de gado, e a lavoura era só para o sustento da casa.
A filha, Jurema, dividia as lidas da casa com a mãe. Sabia cozinhar, lavar e passar, mas do que mais gostava eram os bordados. Dote que aprendeu, mocinha, com a patroa de seu pai.
Nas raízes retorcidas do velho umbu, nas horas de folga, Jurema tecia e sonhava.
Moça de um viço incomum, causava espanto sua resignação em permanecer naquele fundo de campo. E lá se iam quase trinta anos. Nenhum namoro, tampouco um flerte. Nas costas do pai especulava-se a causa – ele não deixava ninguém se aproximar da filha.
Certo dia, restando ainda duas braças de sol, a família reunida à sombra do arvoredo, Jurema atacou de supetão:
- Este ano, pai,, vou ao carnaval no Rio de Janeiro.
O velho levou um susto. Quase engoliu a bomba de chimarrão. Esfregou a mão na testa, fez uma careta e retrucou:
- Que broma é essa, guria?
- Nada não, pai.
O silêncio da noite tampou o sol e a boca da rapariga. O pai ficou uma semana nos calundus.
Jurema, com seus bordados, foi fazendo um pé de meia. Não havia esquecido o seu intento.
Um mês após a quizila com o pai, ela voltou à carga. Desta vez com data e hora para o acontecimento.
- Dia catorze de fevereiro, às dez horas, embarco para o Rio de Janeiro. Vou desfilar na avenida.
Exasperado, o pai nem respondeu. A mãe desandou num choro sufocado, as mãos à boca. Exclamava entre soluços:
- Tá doida! Tá doida!
A filha não lhe deu ouvidos. Continuou os preparativos para a data anunciada.
À noite, por precaução, seu pai metia um cadeado em cada porta da casa. Jurema, apesar disso, mantinha os mesmos costumes. Nunca se alterava e nem questionava o procedimento do pai. Era aquilo e pronto.
A tranqulidade da moça levou a família a tomar uma atitude, até então, impensável – apresentá-la a alguém disposto a fazer-lhe a corte. Ao crivo do pai, sucumbiram todas as possibilidades. O último recurso recaiu sobre o padre que vinha rezar a missa na estância. O vigário, homem de meia-idade, quando se defrontou com Jurema só pode fazer o sinal da cruz. Engasgou no pensamento - Meu Deus, e ainda há quem duvide da obra divina!
A rapariga usava um vestido de algodão, quase transparente, muito curto, solto na cintura. Quando se inclinou para reverenciar o visitante, seus seios ficaram pendurados nos olhos do padre. A tentativa fracassara na apresentação. Mas Jurema comprometeu-se a visitar o Cristo Redentor e a orar pelo sacerdote.
E mais se aproximava o dia da partida e nada punha fim ao dilema da família. O pai, nesse tempo, já acatava qualquer conselho. Desde rezadeira, bruxaria, e até castigo físico. A filha continuava irredutível.
Foi então, num ato de desespero, que o velho partiu para o tudo ou nada. Reuniu-se com a esposa e convocou Jurema. Sem rodeios, foi logo à sentença:
- Se tu não desistir da idéia, guria, eu me mato.
A filha, que bordava como se o assunto não fosse com ela, espetou a agulha no dedo. Contraiu a musculatura da face e cerrou os dentes. Saiu resmungando para seu quarto. O pai, com a reação, animou-se. Era a primeira vez que ela manifestava tamanha contrariedade.
Na manhã seguinte, Jurema ainda estava sisuda. Falava entre os dentes e fazia movimentos bruscos. Ao arrumar a casa, foi deixando tudo fora do lugar, quando não jogava ao chão. A mãe, com medo de provocá-la, ia atrás organizando. A filha foi dormir cedo naquele dia.
A noite abafada parecia anunciar tormenta. Para surpresa de todos, a manhã surgiu iluminada. E Jurema acordou disposta, cantarolando como se nenhum conflito ali existisse. Preparou a mesa para o café e chamou os pais. Serviu o leite, depois o café, e pôs o açúcar mascavo um pouco além da medida. O pai reclamou, mas tomou duas xícaras. A mãe, tentando ser solidária, o acompanhou.
A filha observava cada detalhe daquela cena. Tinha o brilho do olhar úmido, as pupilas dilatadas e a boca seca. Puxava o ar como se estivesse escondida, sem barulho. O pai não conseguiu levantar-se, já não respirava mais. A mãe tentou erguer-se, mas caiu sem sentidos. E foi então a vez de Jurema tomar o café.

VALEU

                                                 Remaldo Cassol
                                                           Setembro de 2010
                                                                                                             
As estrelas pareciam mais um punhado de brilhantes, não permitindo um olhar fixo.
Ofuscavam meus olhos. Nada melhor para passear a noite, ouvir os grilos que com suas chamadas desviavam o pensamento.
Rumo a ser tomado não estava em meu horizonte. Bastava um só motivo e a direção seria repentinamente alterada.
Caminhava, caminhava....
Caminhava ouvindo somente o encontro de meus pés no solo batendo ritmado.
Agora quem estava “grilando” era eu. Embora sem razão começasse a preocupar-me de meu devaneio. Se nada tenho a fazer, por que andar?
Apenas um motivo veio a mente, fugir de mim mesmo. Transportar no mundo meu coração vazio e minha carcaça sem valor, a procura de ser útil.
Longo percorrer de tempo, longos pensamentos.
Aos poucos começa o encontro de pessoas que iam e vinham pelo cais do porto.
Navios balanceavam como se fosse um ninar de criança, mas tão seguros sem chance de voltar às águas.
Serei eu navio também preso com vontade de voltar à vida ou serei um simples barco à deriva?
Meu destino flutuava e minha mente perturbada voltava a refletir com o longo apito dos navios.
Que vejo? Uma linda mulher sentada estendendo os braços. Vou ao seu encontro. No punho um relógio segurando uma mensagem. Sem escrúpulos li: quero morrer, procurem por este telefone.
Rapidamente socorri a moça, arrancando seu cinto apertado. Rasguei o sutiã, a respiração começou a ficar normal. Em poucos minutos chegou a ambulância.
No dia seguinte sentindo-me mais forte e com rumo traçado, telefonei à moça para saber como estava. Sua meiga resposta aliviou-me mais ainda do pesadelo. Afinal meu dia não tinha sido tão inútil. Valeu.


ATÉ UM DIA

Luiz Hugo Burin 
Setembro/2010
- Se quiseres, vais de carona - disse-me Betinho – chega antes do ônibus e não te custa nada.
Aceitei.  Sairíamos ainda na madrugada, às cinco horas. Esfreguei as mãos com satisfação.
O tempo mantinha-se com altas temperaturas. O sol parecia aproveitar as brasas dos dias anteriores para acender nova fornalha em cada manhã. Seria ótimo chegar cedo a Porto Alegre.
Estava totalmente escuro, mas cheguei no horário combinado. Já àquela hora, uma roupa leve era suficiente. 
Cláudio, o motorista, me recebeu com um mate, mas se mostrava ocupado. Éramos, ali, apenas ele e eu. Carregava rolos de cordas e pediu-me que o ajudasse a atirar uma lona pesada dentro da carroceria. Estranhei ver o caminhão sem carga, mas nada perguntei. Talvez aquela viagem fosse para buscar algo, pensei comigo. Meu parceiro fumava bastante. Resmungava alguma coisa para uma papelada em desordem. Dezenas de apontamentos e notas fiscais escondiam por completo o tampo da mesa. Ia fazendo tempo com a autoridade de quem dominava uma situação que apenas a ele dizia respeito. Aquilo tudo se apresentava como algo desnecessário, ao menos para mim. Uma brisa leve varreu-lhe a fumaça da sala como que a acordá-lo. De mate em punho, Cláudio foi até a porta e pode ver o clarão que vinha devagar apontando no horizonte. Olhou rapidamente no relógio do pulso, mas parece não ter visto as horas. Sacudiu a térmica e deu-se conta de que havia secado uma garrafa de água quente. Adulou a erva da cuia com o indicador e levou ao fogo mais uma chaleira de água.
Lá fora, o silêncio mostrava as ruas abertas. Eu gostava daquilo. No alto, as estrelas piscavam com vagar, quase em despedida. A luz dos postes perdia a força para o clarão do nascente. Cidade de interior, acalentando uma paz rotineira de manhãs sem correrias. Os passarinhos acordavam satisfeitos, abrindo figos maduros no pátio da casa do seu Nilton. Meus pensamentos vagavam comparando situações. Nem queria pensar na tranqueira que a estas horas já ocupava a capital. O progresso é barulhento, tem pressa de sair de um lado e chegar a outro. Saboreei a tranqüilidade, e um cusco vadio ilustrou bem a cena. Parou sem medo no meio da rua para coçar as sarnas que se hospedavam nele.
A espera sempre me incomodava. Mas, depois de tanto tempo ali, esperando, me convenci de que estava de férias e não havia por que gastar energia lamentando minha decisão de ir de carona. Pensei nos benefícios de relaxar; pensei na economia que na época correspondia a duas garrafas de vinho. Por outro lado, não via proveito algum no que Cláudio fazia. Não saberia classificar se, de alguma forma, aquilo seria uma tarefa que rendesse algo a ele ou ao patrão.  
Estar por algum tempo sem fazer nada era quase um sonho para mim. Não que minhas ocupações se traduzissem em ganhos e me aliviassem as contas. Por estar em movimento, demonstrava meu temperamento inquieto. Pensei em tantas pessoas que conheço e me conformei, pois cada um tem lá seus afazeres. Mas por mais que nos pareçam insignificantes, têm o seu valor ao menos ao nosso íntimo.
Andei de mãos no bolso, num vai e vem cansativo. Até iniciei uma contagem das lajotas sob meus pés na calçada, para me entreter. Ouvi o roncar da bomba no fundo da cuia e me animei um pouco. Cláudio levantou da cadeira e espreguiçou-se espichando bem os braços sobre a cabeça. Como a alongar-se num gesto natural, escancarou um grande bocejo, coroando o momento do ócio que julgava merecer.
De volta à razão, apalpou a cintura e despencou dela um chaveiro que trazia pendurado. Era quase oito horas. Acendeu mais um cigarro e foi ligar o caminhão. O ronco engasgado do arranque do motor espantou o passaredo ocupado nos figos saborosos. De repente o silêncio cheirava a óleo diesel.  Embarcamos, mas antes de sairmos  Betinho chegou admirado.
- Ué, não sairiam às cinco?
- Mas já é cinco... pras oito – sorriu Cláudio, com uma mão na cuia e outra no guidão.
- Até um dia, Betinho – respondi aliviado... 

NOS CAMINHOS DO DNA

Anna Zoé 
  Setembro/2010
Eram muito unidas. Criadas sem mãe, que falecera deixando a mais moça ainda um bebê, as irmãs socorriam-se mutuamente em todas as dificuldades de seu cotidiano.
A do meio, casada com um arrozeiro, era “uma casa cheia” no dizer das manas.  Quando se encontravam, ia contando novidades de sua vida social, dicas do mundo da moda e relatos de viagens com o marido.  Bonita e elegante, nas lojas sempre a primeira a descobrir o que havia de melhor e mais próprio para a ocasião, e com preços vantajosos.
A mais velha, de belos traços, tinha problemas de saúde desde a infância, e sua vida passava em médicos e hospitais. Mesmo assim, casara com um fazendeiro, tivera um filho e com seu temperamento alegre ia levando a vida do melhor modo possível. Quando recebia as irmãs em sua casa, dava gritinhos de prazer e batia palmas. Coitada, para saírem as três na rua, ela precisava de seu apoio para caminhar com segurança.
A mais moça era menos bonita. Tinha o marido, funcionário público, e os filhos como suas jóias. Isso ela dizia sempre, parodiando a personagem do texto da Seleta - “As jóias de Cordélia. Gostava de prestar serviços às manas fazendo compras, levando recados, servindo-lhes chás ou remédios. E de enfermeira quando ficavam acamadas.
As três gostavam muito de percorrer as lojas, para olhar, comparar qualidades e preços das mercadorias. Davam movimento ao comércio e eram recebidas com todo o respeito pelos proprietários e balconistas
Já não se ouvem mais os seus passos pelas ruas da cidade. Há quanto tempo?!
Hoje um novo trio de irmãs é visto e louvado com frequência - como são unidas - nos estabelecimentos comerciais da cidade, se não para comprar, pelo menos para alegrar os olhos, conforme costumam dizer.
-Ah, se nossas tias faceiras vivessem agora, dizem. Ficariam maravilhadas com os shoppings.
A socialite, esposa de um homem de negócios, entende de modas, escolhe confecções para as manas, ou pelo menos dá as dicas da moda. É alegre, comunicativa, sempre com algo novo e interessante para contar. “Uma casa cheia”, dizem as manas. Nas lojas, tem um “olho clínico”. Descobre sempre o que há de melhor.
Outra, viúva de um pecuarista, tem a saúde bem fragilizada e dificuldades para caminhar. Mas, entre as irmãs, ela se sente amparada e gosta de acompanhá-las em suas andanças. Adora  que a visitem quando o mau tempo ou as dores não lhe permitem sair.
A mais moça, funcionária pública aposentada, é quem dá as caronas no seu Fusquinha de estimação. Sendo a mais disponível, gosta de servir de mandalete para as irmãs. Orgulha-se de sua agenda com telefones dos profissionais socorristas: encanadores, eletricistas, pedreiros, pintores... Por isso, seu telefone funciona como um Centro de Informações.
Será coincidência ou são mistérios da genética?

A BATALHA

 Mariane de Macedo
Agosto de 2010
                          Ana já estava com oito anos e com o nascimento do maninho, a mãe não conseguia mais levá-la à escola, que ficava a quatro quadras de sua casa.  Era mês de março e a aula no horário em que o sol estava mais quente, por isso fora liberada a fazer aquele percurso. Durante o trajeto passava em frente a uma loja, onde permanecia por alguns minutos, observando os brinquedos na vitrine. A loja ficava em uma casa antiga, que havia sido reformada preservando o estilo colonial. Apenas uma vidraça inteira na janela mantendo a sacada de ferro, como forma de decoração. Mas, para Ana servia de degrau, onde ficava na ponta dos pés, que impulsionando o corpo sobre os ferros, visualizava os brinquedos. A boneca Susi vestida de noiva se destacava. Chegando em sua casa a menina foi ao encontro da mãe.
                  — Mãe, me dá a boneca lá da vitrine? — e para sua alegria a resposta foi positiva.        
                 — Dou sim filha, depois de amanhã, quando seu pai voltar.
                  No dia seguinte a criança foi para a escola e só pensava no brinquedo.  No recreio o assunto era a Susi de Ana: as colegas faziam acertos de como receberiam a nova amiga de suas bonecas e cada qual sugeria um nome. Algumas meninas brigavam porque desejavam ser madrinha da noiva. E assim, aquela tarde passou muito rápida. O sinal tocou, hora de ir.
                  Na vitrine, a boneca piscava os olhos para menina, confirmando que no outro dia estariam juntas. Ana sorria.  Despediu-se abanando, atirando beijos e um até amanhã.  Não caminhava, saltitava rua fora a cantarolar.
                Naquela noite, o sono venceu os olhos que não queriam fechar, mas a boca não conseguiu colocar o sorriso para dormir. O sol não acordara e Ana já estava em pé, com agulha, linha e tecidos costurava algumas peças de roupas para sua filha. Já era quase meio dia, com o enxoval pronto a criança correu em direção à mãe.              
                 — Mãe! Vamos buscar minha Susi — convidou a menina.           
                  — Amanhã filha, hoje teu pai não está aí — e a mãe deu as costas e seguiu seus afazeres.
                  Os olhos negros da criança foram se apagando junto com o sorriso.  Ana saiu correndo sem olhar para trás.  À medida que se distanciava da mãe, uma faca fincava-lhe na boca do estômago, deixando-a sem ar. Tentava gritar, mas apenas bolhas de saliva ocupavam a boca, cada vez que tentava abrí-la. As lágrimas percorriam-lhe a face rosada e infantil. O choro era apenas um grunhido baixinho, engolido pelo medo de ser descoberta sob a escada.
                 No almoço a mãe não percebeu os olhos magoados da filha, nem lhe olhou. No caminho para à escola, mais uma espiadela na vitrine. A boneca permanecia lá, mas não lhe piscou os olhos.
                 Na porta do colégio as coleguinhas vieram ao seu encontro, cheias de expectativas.
              — Ana, e a boneca? —perguntou uma das amigas.
               — Meu pai não estava ai — disse a menina com a voz embargada, e com os olhos baixos e úmidos — mas amanhã ele chega e minha mãe disse que vai me dar.
                Ela seguiu pelo corredor até a sala de aula sozinha, enquanto as colegas cochichavam.
                   As horas não passavam, mas as folhas das árvores já começavam a cair, e o amanhã se distanciava. Mas o espiar na vitrine virou um ritual, percebido pelos donos da loja. Era um casal de velhinhos, que de tanto ver a menina pendurada enfrente a vidraça, convidavam-na para entrar na volta da escola. Ali ela ficava por alguns minutos e não desgrudava os olhos da Susi. O velhinho pegava a caixa da boneca e lhe oferecia para pegar um pouquinho. Com o peito batendo forte, as mãos suadas e um tremor no corpo agarrava a caixa devagar, olhando profundamente a boneca e depois a contraia ao peito, sabendo que era o fim de mais um encontro. Para casa, levava uma dor, que lhe doía no peito, até o outro dia.
                   O frio intenso do inverno já não permitia as brincadeiras no pátio, e os recreios eram nos salões da escola, que convidavam às brincadeiras em grupinhos. Os meninos jogavam cartas ou bolinha de gude. As meninas brincavam de roda ou de bonecas. Ana assistia a tudo de longe, pois não tinha boneca e ninguém queria mais brincar com ela. As colegas riam e lhe chamavam de mentirosa. Ela corria pelo colégio fugindo da gurizada, que lhe provocava gritando bem alto. Mentirosa! Mentirosa!
                     As estações continuaram a passar. Mas a menina ficou presa na vitrine. Ao ver-se nela refletida, o corpo estava adulto, e ali terminava sua batalha. 

DOR

                                                      
                                                  Renato Beck
Setembro/2010
Foi meu amigo desde guri. E a gente conversava sobre tudo, mas o assunto dominante era de acordo com a idade. Falava-se sobre brincadeiras, molecagens, jogos, o colégio, as namoradas, e, no meio disso tudo, alguma coisa pessoal.
Muito cedo, comecei a notar que ele tinha grande dificuldade em enfrentar qualquer coisa que envolvesse a dor. Quando abordei o assunto, e contou-me o início de tudo.
Disse que nascera de parto induzido com ajuda de fórceps. A mãe lhe contara que tinha sido muito sofrido seu nascimento. Ela tivera muita dor, até perdera os sentidos. E que tal história voltava à baila toda vez que nascia alguém na família.
O tempo foi andando, e ficamos taludos. Apareceram os primeiros fios de barba, a voz claudicava, mas já no sentíamos homens. E ele sempre se esquivando de qualquer ação que pudesse produzir a tão temida dor.
No futebol, jogava nas beiradas do campo. Não dividia a bola. Até recebera o apelido de pipoqueiro, tanto que saltava dos confrontos. Quando viu que seria inevitável, em algum jogo, o choque, pendurou as chuteiras.
Jamais alimentava atritos. Afastava-se imediatamente. Chegou a inventar que era hemofílico e que tinha SIDA para afugentar possíveis agressores. Tinha sonhos em pilotar uma moto, mas o receio de uma queda o fez reprimir o desejo.
Foi namorador até que um dia uma namorada lhe disse que o amor, às vezes, doía. Isso bastou para torná-lo um verdadeiro eunuco.
Não admitia sequer pensar de um dia vir a ter uma dor de dente. Certa vez estudou a possibilidade de, sob anestesia, mandar arrancar todos os dentes. O medo da agulha refreou-lhe o ímpeto.
Jamais fez vacinas. Não adoecia. No surto de gripe, ainda no colégio, ficava em casa. Amigos que estivessem doentes, nem pelo telefone atendia.
Fui perdendo o contato com ele. Sabia notícias pela sua mãe. A evitação se tornava cada vez mais intensa. Ele já não saía de casa. Seus relacionamentos eram pela internet. E a palavra dor reconhecida como vírus.
Chegou ao extremo quando comprou um veneno, tão poderoso, que matava imediatamente, sem dor Não pode usar. Teve morte súbita aos trinta anos. Morreu sem sentir dor uma única vez.
O epílogo desta história está colocado na lápide, cujo epitáfio diz:
“Aqui jaz, Fulano de Tal, que morreu aliviado.”


TARILAL

                                                     Ivete Tôrres
Setembro/2010
Tarilal tem doze anos. Vive numa aldeia budista chamada Humla, no Himalaia, lá no oriente do globo terrestre. Seus habitantes, os nymbas, são pessoas alegres, trabalhadoras e prósperas.
          
Hoje é um dia especial. Dia do seu casamento. Envolta em um tecido de brocado que passa de geração para geração, véu prateado, enfeitado com pérolas, coral, turquesa e ouro, a noiva não parece feliz. Mesmo que esteja, não pode demonstrar. Pelo costume de seu povo, se a noiva expressar alegria estará ofendendo o pai, que nesse dia a está ofertando aos seus noivos. Noivos?
         
Cinco. A menina hoje está desposando cinco irmãos com idades que vão de três a vinte e quatro anos de idade. O mais velho é Baderay.  Gurkha tem vinte e dois anos. Sonam, dezoito anos. O jovem Chime Tsering, com doze anos e o pequeno Ngodrup.
         
É um casamento arranjado, como todos realizados por ali. Um homem rico casa a filha com todos os filhos de outro homem rico, para a fim de não dividirem as terras entre muitos descendentes. E também para reduzir o número de filhos, o que vai cairia novamente na divisão de terras.
         
O pai dos noivos passou a vida inteira juntando riqueza para exibir no dia do casamento dos filhos. Assim a celebração e a festa das bodas duram dias e noites. Com uma festa farta e cheia de pompa, ele ostenta ao povo da aldeia o quanto é poderoso e rico.
        
Tarilal impassível, não demonstra qualquer sentimento ou mesmo cansaço. Seus maridos mais velhos parecem divertirem-se muito com tudo aquilo, mas o pequeno Ngodrup bem que gostaria de  livrar-se das roupas de gala e brincar com os amiguinhos.
          
Embora tanto empenho, esse casamento não irá consumar-se agora. A noiva ficará morando com seus pais até a puberdade. Chegada a menstruação, então iniciará a vida conjugal na casa construída para todos.
          
Um ano é passado. Tarilal menstruou e seus maridos vêm buscá-la. No semblante da menina há uma vaga tristeza. Fim das brincadeiras com os irmãos e de uma vida sem responsabilidades.
          
Ao abraçar a filha, a mãe alerta mais uma vez:
          
- Lembra que se tiveres preferência por um dos maridos, e vais ter, não deves demonstrar a ninguém. Tens que tratar todos de maneira igual. Tu és a responsável pela harmonia na casa, e se preferires um, os outros irão ficar descontentes.

- Não se preocupe minha mãe, eu farei tudo como deve ser feito.
Dito isso, abraçou os pais e irmãos, e olhou para Baderay, o marido mais velho, como a dizer: estou pronta. E a comitiva de seis pessoas segue em direção ao seu destino.
         
Chegam a nova casa. Tarilal sabe que hoje se fará mulher, e que a vida nunca mais será a mesma. Está com medo. Medo de não agradar seus homens, medo de ser devolvida ao pai, medo de não ser feliz.
         
Logo ao chegarem o marido mais novo diz estar com fome. A esposa trata logo de alimentá-lo. Lembra de uma das recomendações da mãe: fazer o marido mais moço feliz será o seu maior desafio. Ngodrup come, e logo pega no sono, cansado da viagem.
         
Ao longo da noite a menina Tarilal se torna mulher. O marido mais velho é o primeiro a dormir com ela. Com o passar dos dias, os outros maridos também poderão desfrutar de seu corpo. O sexo poderá acontecer sempre, a qualquer hora, mas se com o consentimento do marido mais velho.
E a vida por ali segue em frente. Baderay se dedica ao comércio e para isso viaja muito pelo Himalaia, e também por países vizinhos como Nepal e Tibete. Gurkha e Sonam se dividem entre a agricultura e o pastoreio. Chime Tsering e o pequeno Ngodrup permanecem sempre perto da dedicada esposa.

Tarilal lava, faz comida, costura, cuida da casa. Não deixa faltar nada aos companheiros. É considerada, pelos maridos, uma boa esposa. Todos estão satisfeitos. 

Catorze anos. Descobre que está grávida. Logo comunica aos maridos que ficam muito felizes. Começam a preparar uma festa para as duas famílias, onde Tarilal anunciará a gravidez. E dirá quem é o pai. Na aldeia é costume a mãe dar a paternidade àquele quem ela acredita ser o pai, pois fica difícil saber com exatidão. Mas todos serão chamados de pai. O pai mais velho, o segundo pai, o terceiro pai, e nesse caso, o quarto e o quinto pai.

Tarilal escolhe Sorinam. Pede a Buda que seu filho tenha o mesmo sorriso do pai, que é o mais alegre dos cinco. Ela tem preferência por esse e pelo pequeno Ngodrup. Mas procura disfarçar para evitar a desarmonia tão temida pelos nymbas.

A festa se estende por dois dias. Todos estão felizes. Terminados os festejos, se dirigem as suas casas. Tarilal deita Ngodrup em sua cama, que está exausto. Feito isso, vai para os braços de Sonam, que a espera, ansioso. Após o amor ele dorme tranqüilo e saciado. Tarilal olha um por um de seus maridos, dá um suspiro, do dever cumprido e adormece.
Acorda poucos minutos depois, com Ngodrup chamando por ela. Rapidamente vai ao encontro do marido, que chora copiosamente. Estende os braços e o aperta contra o peito:

- Que aconteceu, senhor meu marido? – pergunta aflita.

- Sonhei sonho ruim...
      
A jovem esposa abraça mais forte o senhor menino:
      
- Dorme marido, não chore mais. Eu ficarei aqui.
       
Passa a mão pelos cabelos negros do menino. Beija sua testa úmida de medo. Embala o quinto pai de seu filho, e sussurra em seu ouvido uma canção de ninar. Sorri ao ver seus olhinhos miúdos se fecharem, lentamente.

SERÁ VERDADE?


                                                       Anna Zoé 
Setembro/2010
Maria Rosa suspirou de alívio. O almoço ia em meio, e ninguém reclamara do sal a mais ou a menos. Milagre!
Todos os dias era uma ladainha de queixas. Dona Eulália gostava do bife bem passado, e dona Edith exigia que fosse muito batido para ficar macio. Seu Antero implicava que o ovo frito nunca estava no ponto. A gema precisava ficar nem mole nem dura. E também não gostava quando o ovo saía aos pedaços.
A mocinha era nova no serviço, seu primeiro emprego. Ninguém lhe ensinara nada até então, e agora ela contava com duas instrutoras, a nora e a sogra dando-lhe ordens contraditórias. Os tomates devem ser servidos com casca para não perderem as propriedades, dizia dona Edith. Precisa tirar a casca e as sementes por causa do emprego dos agrotóxicos retrucava a sogra. E Maria Rosa não sabia onde estava a verdade.
O menino da casa, na sua proclamada saída da infância – eu sou um pré-adolescente – quase não falava, sempre com fones nos ouvidos para apreciar suas músicas. Mas quando não gostava da comida, levantava da mesa e ia direto para o computador.
- Aonde vai, perguntava seu Antero.
- Não estou com fome, pai, na escola comi um lanche muito bom.
E ia entreter-se com os jogos de sempre - lutas de monstros ou guerreiros com trajes e armas estranhos. 
Quando a casa estava calma, ele tentava explicar para Maria Rosa quais eram os bandidos e quais os mocinhos da história. E mostrava seres de outros planetas, cada um mais horroroso que o outro, que a deixavam apavorada.
- Esses aqui estão planejando invadir a Terra, sabias?
- Quando, por que? perguntava ela.
- Ué, pois os terráqueos não invadiram seus mundos? Eles querem vingança. Os discos voadores andam por aí sondando nossas defesas.
Maria Rosa tinha pesadelos. Qualquer ruído estranho à noite a deixava com medo. O menino da casa é tão inteligente. Sempre o que ele diz parece ter sentido. E essa invasão dos ETs de que ele fala, será verdade?