Luiz Hugo
Setembro/2010
Éramos todos do interior. Idalício tinha vinte e três anos. Diego, Alírio, Zoca e eu, dezenove. O ano de 1974 terminava e concordamos em alugar um apartamento. Como as ofertas eram muitas, na época, não foi difícil encontrar um. Dois dormitórios, próximo ao centro, e com fácil acesso às paradas de ônibus. Os coletivos nos levavam à PUC, às namoradas, ao futebol.
Apenas Idalício trabalhava. Eu, a cada fim de semana ia, para o interior onde tocava em bailes e defendia algum trocado. Vivíamos escorados uns nos outros, sempre contando com a ajuda de Deus e de nossos pais. Quem tivesse dinheiro sabia que estaria financiando a vida dos demais. A miséria era quase franciscana.
À tarde, após Idalício assinar o contrato de aluguel, passou na Mesbla e comprou cinco camas. Só. Mais barato seria impossível, o que dá para imaginar a qualidade do produto adquirido. Passamos um mês vivendo assim, em que a sala e a cozinha eram espaços livres. Mas aos poucos foram sendo ocupadas com nossas malas, sapatos ou chinelos jogados ou esquecidos por lá.
Aos sábados e domingos, quando todos nos encontrávamos em casa, sentávamos no assoalho. Não havia cadeiras ou mesa para ficarmos ao redor. As paredes eram nuas, e a cor branca só era quebrada pelas tomadas que pareciam olhos curiosos a nos fitar. Na entrada da sala, um aviso irônico alertava para que todos zelassem pela conservação dos móveis. Algumas moscas voavam tontas sobre nossas cabeças, tristonhas sem ter onde pousar ou o que comer. Na cozinha, só havia um balcão com pia. Dentro dele, algumas baratas se negavam a ir embora. O tampo era de pedra, carcomida pelo uso de detergente de antigos moradores. No chão, a cerâmica ainda tinha marcas dos pés de uma geladeira. Nós a imaginávamos repleta de pratos saborosos, sorvetes ou cervejas bem geladas.
Afora Diego, todos tocavam algum instrumento, violão, gaita, violino, clarinete e saxofone. Não havia lugar para lamentações e qualquer tipo de tristeza. Tínhamos toda a alegria do mundo. Sentados no chão por longo tempo, iniciava uma dor nas pernas e, claro, nos sentíamos um pouco índios. Diego alegrava a todos. Com piadas engraçadas fazia com que nos sentíssemos quase como seres normais. Nem lembrávamos a suntuosidade dos edifícios a nossa volta e a vida abastada que poderiam levar. Sentíamos saudade da casa simples, mas farta, dos nossos pais lá do interior.
Num sábado à noite, descobrimos que ninguém tinha dinheiro suficiente para que comêssemos e ficássemos satisfeitos. Contamos as migalhas de moedas que restavam nos bolsos e compramos alguns alimentos. A fruteira era na esquina. Em minutos tudo foi picado dentro de uma bacia de plástico. Laranjas, bananas, maçãs e cenouras. Uma salada de frutas era o que tínhamos para comer. Dividimos entre os cinco convivas e saboreamos em minutos aquele cardápio que Diego batizou de: jantar tropical. Uma hora depois, completada a digestão, nossas barrigas roncavam reclamando por mais comida.
A sacada do apartamento dava para a rua. Ficávamos horas lá, fumando, ponteando o violão, cantarolando e apreciando a paisagem alheia da capital. Não conhecíamos ninguém e ninguém nos conhecia. Na rua sem saída, ora chegava carro, ora algumas crianças jogavam bola no paralelepípedo.
Passado o primeiro mês, todos já tínhamos conseguido trabalho. Compramos mesa, seis cadeiras e fogão. Ao longo dos meses adquirimos panelas, talheres e louça para a cozinha. Era nosso progresso coletivo, interessante e necessário.
Meu trabalho era à noite. Chegava a casa por volta das duas da madrugada. No caminho de retorno, a pé, já aprendera a conhecer quase todos os ratos e seus endereços nas bocas de lobo em que moravam. Eram enormes, inteligentes e pareciam bem saudáveis. No silêncio das noites, sabiam aproveitar os alimentos que alguns homens produziam com muito sacrifício, mas que outros jogavam no lixo.
Naquele vai-e-vem noturno, eu era feliz e vi a sorte sorrir ainda mais para mim. Encontrei, jogado na sarjeta, um engradado vazio de cerveja. Era de madeira, velho e sujo. Levei para casa sem titubear. Após uma bela faxina com escova e sabão, virara meu bidê. Os companheiros até invejavam aquele novo móvel junto à cabeceira da minha cama.
Numa sexta-feira, vimos o apartamento em frente ser habitado, depois de muito tempo com as janelas fechadas. Ficava no outro lado da rua, no quarto andar, como o nosso. Eram quatro moças que haviam se mudado para lá. De imediato, faziam com que nossa imaginação voasse maravilhada. Discretamente passamos a seguir seus movimentos da sala para os quartos, cozinha, banheiro. Estavam muito ocupadas arrumando seus pertences.
À noite, já na primeira tentativa de ver algumas delas em trajes menores, ou melhor ainda, sem traje algum, Zoca nos chamou. Com voz baixa, ordenou que fizéssemos silêncio, ou estragaríamos tudo. Ficamos frente à janela entreaberta do nosso quarto, com a luz apagada. As moças, ao contrário, tinham as janelas do apartamento bem abertas. Ficamos algum tempo a ver um espetáculo que nos divertia. Cada uma saía do banho bem à vontade. Só com a toalha, secavam os cabelos e o corpo, sem nenhuma cerimônia.
Deliciamos-nos por algum tempo com aquele filme inesperado. De repente, Diego abriu as duas folhas da janela com força, gritando e chamando a atenção das vizinhas. Tentamos esconder-nos rápido, ao mesmo tempo que corremos para esmurrar o amigo infiel. Como vizinhos, prevíamos que o saldo pela nossa atitude seria um fracasso.
No sábado à noite, Idalício e eu levamos as namoradas para conhecer onde residíamos. Aproveitamos para beber um pouco do vinho que Zoca havia trazido da casa dos pais, que moravam numa colônia italiana. Mostramos também a visão que tínhamos da sacada. E, para nossa surpresa, apareceu uma das vizinhas. Da janela reconheceu minha namorada e foi logo gritando:
- Como vai, Branca? Não pude ir à aula ontem porque estou de mudança. Imagina a bagunça que está aqui.
Gelei e entrei depressa, meio desconsertado. Bebemos mais um pouco e fomos ao cinema. Minha cabeça não era mais a mesma. Ao voltar para casa, Alírio e eu bebemos muito mais, lembrando o fiasco. No outro dia estávamos passando mal. Meu amigo demonstrava ter ainda alguma força. De vez em quando, conseguia levantar a cabeça do travesseiro, mas apenas até a altura da janela para conferir o movimento das moças. De minha parte, a ressaca parecia incurável. E piorava só em imaginar a reação de Branca, caso viesse saber do acontecido da noite anterior.