domingo, 31 de outubro de 2010

DESFILE NA AVENIDA

Renato Pinto Beck 
  Setembro/2010
Era uma família simples do interior. O pai recebera uma gleba de terras nos fundos da estância onde trabalhara a vida toda. Estava velho, não sabia fazer outra coisa. Cuidava uma ponta de gado, e a lavoura era só para o sustento da casa.
A filha, Jurema, dividia as lidas da casa com a mãe. Sabia cozinhar, lavar e passar, mas do que mais gostava eram os bordados. Dote que aprendeu, mocinha, com a patroa de seu pai.
Nas raízes retorcidas do velho umbu, nas horas de folga, Jurema tecia e sonhava.
Moça de um viço incomum, causava espanto sua resignação em permanecer naquele fundo de campo. E lá se iam quase trinta anos. Nenhum namoro, tampouco um flerte. Nas costas do pai especulava-se a causa – ele não deixava ninguém se aproximar da filha.
Certo dia, restando ainda duas braças de sol, a família reunida à sombra do arvoredo, Jurema atacou de supetão:
- Este ano, pai,, vou ao carnaval no Rio de Janeiro.
O velho levou um susto. Quase engoliu a bomba de chimarrão. Esfregou a mão na testa, fez uma careta e retrucou:
- Que broma é essa, guria?
- Nada não, pai.
O silêncio da noite tampou o sol e a boca da rapariga. O pai ficou uma semana nos calundus.
Jurema, com seus bordados, foi fazendo um pé de meia. Não havia esquecido o seu intento.
Um mês após a quizila com o pai, ela voltou à carga. Desta vez com data e hora para o acontecimento.
- Dia catorze de fevereiro, às dez horas, embarco para o Rio de Janeiro. Vou desfilar na avenida.
Exasperado, o pai nem respondeu. A mãe desandou num choro sufocado, as mãos à boca. Exclamava entre soluços:
- Tá doida! Tá doida!
A filha não lhe deu ouvidos. Continuou os preparativos para a data anunciada.
À noite, por precaução, seu pai metia um cadeado em cada porta da casa. Jurema, apesar disso, mantinha os mesmos costumes. Nunca se alterava e nem questionava o procedimento do pai. Era aquilo e pronto.
A tranqulidade da moça levou a família a tomar uma atitude, até então, impensável – apresentá-la a alguém disposto a fazer-lhe a corte. Ao crivo do pai, sucumbiram todas as possibilidades. O último recurso recaiu sobre o padre que vinha rezar a missa na estância. O vigário, homem de meia-idade, quando se defrontou com Jurema só pode fazer o sinal da cruz. Engasgou no pensamento - Meu Deus, e ainda há quem duvide da obra divina!
A rapariga usava um vestido de algodão, quase transparente, muito curto, solto na cintura. Quando se inclinou para reverenciar o visitante, seus seios ficaram pendurados nos olhos do padre. A tentativa fracassara na apresentação. Mas Jurema comprometeu-se a visitar o Cristo Redentor e a orar pelo sacerdote.
E mais se aproximava o dia da partida e nada punha fim ao dilema da família. O pai, nesse tempo, já acatava qualquer conselho. Desde rezadeira, bruxaria, e até castigo físico. A filha continuava irredutível.
Foi então, num ato de desespero, que o velho partiu para o tudo ou nada. Reuniu-se com a esposa e convocou Jurema. Sem rodeios, foi logo à sentença:
- Se tu não desistir da idéia, guria, eu me mato.
A filha, que bordava como se o assunto não fosse com ela, espetou a agulha no dedo. Contraiu a musculatura da face e cerrou os dentes. Saiu resmungando para seu quarto. O pai, com a reação, animou-se. Era a primeira vez que ela manifestava tamanha contrariedade.
Na manhã seguinte, Jurema ainda estava sisuda. Falava entre os dentes e fazia movimentos bruscos. Ao arrumar a casa, foi deixando tudo fora do lugar, quando não jogava ao chão. A mãe, com medo de provocá-la, ia atrás organizando. A filha foi dormir cedo naquele dia.
A noite abafada parecia anunciar tormenta. Para surpresa de todos, a manhã surgiu iluminada. E Jurema acordou disposta, cantarolando como se nenhum conflito ali existisse. Preparou a mesa para o café e chamou os pais. Serviu o leite, depois o café, e pôs o açúcar mascavo um pouco além da medida. O pai reclamou, mas tomou duas xícaras. A mãe, tentando ser solidária, o acompanhou.
A filha observava cada detalhe daquela cena. Tinha o brilho do olhar úmido, as pupilas dilatadas e a boca seca. Puxava o ar como se estivesse escondida, sem barulho. O pai não conseguiu levantar-se, já não respirava mais. A mãe tentou erguer-se, mas caiu sem sentidos. E foi então a vez de Jurema tomar o café.

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