domingo, 31 de outubro de 2010

ATÉ UM DIA

Luiz Hugo Burin 
Setembro/2010
- Se quiseres, vais de carona - disse-me Betinho – chega antes do ônibus e não te custa nada.
Aceitei.  Sairíamos ainda na madrugada, às cinco horas. Esfreguei as mãos com satisfação.
O tempo mantinha-se com altas temperaturas. O sol parecia aproveitar as brasas dos dias anteriores para acender nova fornalha em cada manhã. Seria ótimo chegar cedo a Porto Alegre.
Estava totalmente escuro, mas cheguei no horário combinado. Já àquela hora, uma roupa leve era suficiente. 
Cláudio, o motorista, me recebeu com um mate, mas se mostrava ocupado. Éramos, ali, apenas ele e eu. Carregava rolos de cordas e pediu-me que o ajudasse a atirar uma lona pesada dentro da carroceria. Estranhei ver o caminhão sem carga, mas nada perguntei. Talvez aquela viagem fosse para buscar algo, pensei comigo. Meu parceiro fumava bastante. Resmungava alguma coisa para uma papelada em desordem. Dezenas de apontamentos e notas fiscais escondiam por completo o tampo da mesa. Ia fazendo tempo com a autoridade de quem dominava uma situação que apenas a ele dizia respeito. Aquilo tudo se apresentava como algo desnecessário, ao menos para mim. Uma brisa leve varreu-lhe a fumaça da sala como que a acordá-lo. De mate em punho, Cláudio foi até a porta e pode ver o clarão que vinha devagar apontando no horizonte. Olhou rapidamente no relógio do pulso, mas parece não ter visto as horas. Sacudiu a térmica e deu-se conta de que havia secado uma garrafa de água quente. Adulou a erva da cuia com o indicador e levou ao fogo mais uma chaleira de água.
Lá fora, o silêncio mostrava as ruas abertas. Eu gostava daquilo. No alto, as estrelas piscavam com vagar, quase em despedida. A luz dos postes perdia a força para o clarão do nascente. Cidade de interior, acalentando uma paz rotineira de manhãs sem correrias. Os passarinhos acordavam satisfeitos, abrindo figos maduros no pátio da casa do seu Nilton. Meus pensamentos vagavam comparando situações. Nem queria pensar na tranqueira que a estas horas já ocupava a capital. O progresso é barulhento, tem pressa de sair de um lado e chegar a outro. Saboreei a tranqüilidade, e um cusco vadio ilustrou bem a cena. Parou sem medo no meio da rua para coçar as sarnas que se hospedavam nele.
A espera sempre me incomodava. Mas, depois de tanto tempo ali, esperando, me convenci de que estava de férias e não havia por que gastar energia lamentando minha decisão de ir de carona. Pensei nos benefícios de relaxar; pensei na economia que na época correspondia a duas garrafas de vinho. Por outro lado, não via proveito algum no que Cláudio fazia. Não saberia classificar se, de alguma forma, aquilo seria uma tarefa que rendesse algo a ele ou ao patrão.  
Estar por algum tempo sem fazer nada era quase um sonho para mim. Não que minhas ocupações se traduzissem em ganhos e me aliviassem as contas. Por estar em movimento, demonstrava meu temperamento inquieto. Pensei em tantas pessoas que conheço e me conformei, pois cada um tem lá seus afazeres. Mas por mais que nos pareçam insignificantes, têm o seu valor ao menos ao nosso íntimo.
Andei de mãos no bolso, num vai e vem cansativo. Até iniciei uma contagem das lajotas sob meus pés na calçada, para me entreter. Ouvi o roncar da bomba no fundo da cuia e me animei um pouco. Cláudio levantou da cadeira e espreguiçou-se espichando bem os braços sobre a cabeça. Como a alongar-se num gesto natural, escancarou um grande bocejo, coroando o momento do ócio que julgava merecer.
De volta à razão, apalpou a cintura e despencou dela um chaveiro que trazia pendurado. Era quase oito horas. Acendeu mais um cigarro e foi ligar o caminhão. O ronco engasgado do arranque do motor espantou o passaredo ocupado nos figos saborosos. De repente o silêncio cheirava a óleo diesel.  Embarcamos, mas antes de sairmos  Betinho chegou admirado.
- Ué, não sairiam às cinco?
- Mas já é cinco... pras oito – sorriu Cláudio, com uma mão na cuia e outra no guidão.
- Até um dia, Betinho – respondi aliviado... 

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